O Homem que chega Cansado

 Este homem que chega cansado a casa abre a porta devagar, tão devagarinho, como se fosse apenas mais um dia da sua vida monótona. Vida essa que é sempre igual, ou assim lhe parece. Será sempre igual a vida? Ou será sempre igual para este homem que chega cansado a casa e abre a porta devagar, devagarinho?  Queixa-se ele da igualdade dos dias da sua vida, como se esses dias se repetissem insistentemente só pelo prazer de se repetirem a eles próprios, fazendo de propósito para cansar este homem que chega cansado a casa por que sabe que amanhã vai ser igual e então abre a porta devagar, devagarinho, porque ontem a abriu depressa e assim sempre se quebra a rotina. A palavra rotina faz-lhe lembrar uma fábrica onde os operários efectuam os mesmos gestos, por horas e dias a fio, parecendo robots que nunca enferrujam. Mas é mentira, eles enferrujam e os seus gestos outrora sistematizados e regulares tornam-se desmazelados e até inúteis. Vá, vai para a reforma operário, que não há óleo que cure essa tua grande ferida de ferrugem que tens espalhada pelo corpo. Assim se sente este homem que chega cansado a casa e que, depois de abrir a porta devagar, devagarinho, porque ontem a abriu depressa, se senta no sofá ainda mais devagar, porque ontem ele rangeu e está a ficar com a ferida que é a ferrugem nas suas molas que todos os monótonos dias aguentam o sentar deste homem que chega cansado a casa. Até as molas do sofá têm algo a dizer neste mundo e estas dizem que estão cansadas quando este homem que cansado chega a casa todos os singulares dias da sua vida. 
  Será isto a vida, chegar a casa cansado? Então, este homem sentado no sofá cansado franze o cenho, pois sabe a resposta. Não é a vida isto de chegar cansado a casa e ter apenas as molas do sofá para conversar. E não é grande conversa esta de queixumes  de quem está sempre cansado de estar cansado de mais. A testa enrugada deste homem fazia lembrar um lençol engelhado em cima da cama. Os seus olhos fechados com força pediam descanso e algo de diferente por de baixo das sobrancelhas negras e espessas que um dia ficarão alvas e carecas vítimas do cansaço que sente este homem que chega cansado a casa. 
  Quase que deixa saltar uma cansada lágrima pela face dorida, mas de tão cansada estar, não conseguiu nadar na cascata que desaba no queixo deste homem cansado. Tenta alegrar-se e desfazer-se destes pensamentos pesados que surgem todos os dias quando chega cansado a casa e se senta no seu sofá hoje mais cansado que ontem dizendo para si que, pelo menos, hoje o seu dia teve algo de diferente. Abriu a porta devagar e não depressa. Sentou-se no sofá mais devagar ainda, e não depressa. Conseguiu conter a sua lágrima cansada neste dia, e não chorou sentado no sofá como nos outros tantos dias que fazem a sua vida, pois precisava de mudar algo neste monótono dia a dia, e travar uma lágrima já cansada de tanto nadar é uma mudança que os seus olhos ansiavam. A pobre lágrima agradeceu esta folga, porque nadar todos os dias também custa, mesmo que seja para uma lágrima que habituada está a estes serviços de chorar. A lágrima agradeceu a este homem que chega cansado a casa a sua atitude de não chorar mais e pediu-lhe que um dia, se o tivesse de fazer, que a chamasse só a ela, pois uma lágrima já cansada não faz mal a ninguém.


Comentários

  1. R: Acredito. Mas felizmente ainda não perdi ninguém próximo de mim daí não saber qual é essa saudade. Espero não vir a saber tão cedo.

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