Os Sonhos Acontecem

  Os sonhos acontecem. Acontece adormecer por puro cansaço. Os teus olhos redondos como uma cereja, ou ovais como uma amêndoa dourada, cedem ao profundo desejo do teu cérebro que implora para adormecer. O teu coração acelerado diz-te que deseja sonhar, e esse teu cérebro impertinente e mandão, ordena que durmas sem pensar no coração. Dorme apenas e descansa para que eu fique descansado. As tuas pálpebras cedem, por fim. Afinal, não é assim tão difícil a incrível tarefa de adormecer! E os sonhos acontecem, não te esqueças disso.
  O coração implora para que os teus sentidos te proporcionem o prazer de um simples sonho - seja ele triste ou alegre - porque, sejamos sinceros, às vezes o coração não quer saber disso para nada! Enfim, desde que tenhas um sonho que te proporcione ilusões, devaneios ou fantasias da realidade irreal. O coração fica contente quando isto acontece, pois ele é mestre na arte de iludir e tu és um cordeirinho que cai na sua ilusão sem conseguir escapar, porque os sonhos acontecem e não há como evitar. 
  Pousas as tuas mãos na mesa fria e encostas a cabeça para descansar o cérebro e talvez fazer a vontade ao coração, esse que tem uma voz secreta dentro de ti e que é mais que um simples órgão musculoso. É o centro do sistema da circulação do sangue, circulação essa que faz circular os teus sonhos pelas veias, e só assim sobrevive. Por isso, os sonhos acontecem e amanhã, quando acordares, poderás já não te recordar deste. Sonha. Ao sonhares, a circulação dos sonhos continua e as tuas veias não secam. Se não secam, mantém-te viva. Logo, os sonhos acontecem para te manter viva.
  O cérebro rende-se à insistência do manhoso coração. O pobre cérebro só quer descansar e pôr as ideias em ordem, pois é isto que o mantém vivo: o respirar das palavras exaustas é o seu oxigénio. 
  O coração ganha neste jogo dos sonhos e em tantos outros ganhou e ganhará, enganando os mais incautos seres, porque, para além de ser um órgão vital, é o centro da sensibilidade, do amor e de tudo faz para continuar a sonhar, pois sem sonhos ele secará, de dentro para fora. Então, esta voz secreta que é o coração, sobrepõem-se à tua alma já adormecida e espreita cá para fora. Sai, devagarinho, pela tua cabeça. Não sai assim, sem mais nem menos! Abre uma pequena fissura; essa voz secreta ganha vida e forma. Ao sair pelo teu cérebro já rendido e adormecido, leva essa fissura consigo, servindo de guarda-chuva para a proteger das possíveis intempéries. Será esse o sonho? Claro que não. É a realidade. Essa fissura é mais um sonho que se liberta, graças ao coração, e tu nem dás por nada! Enquanto dormes, eles viajam para que tu sonhes e voltam depois para que tu te lembres. Os sonhos acontecem e também acontece que eles não voltem, porque sendo o sonho tão bom e sabendo eles que se vai concretizar, não vale então a pena voltar para que te lembres, porque o sonhaste, mesmo sem te recordares e irás vivê-lo quando menos esperares.
  A voz do coração desperta-te, com um clamor de quem já está cansado de sonhar e são horas de deixar o irreal dos sonhos para trás. Voltaremos a ele quando a noite chegar e pode ser que desta vez não chova, para que a voz do coração que ganhará novamente forma, passeie com o sonho de mão dada na escuridão. Farão esta viagem vezes sem conta porque uma pessoa nunca deixa de sonhar, e ainda bem, porque este negócio dos sonhos é o seu sustento. O que faria a voz do coração se não existissem estes devaneios noturnos? Já não andaria de mão dada com os sonhos... Oh, que visão romântica é esta de dar a mão a um sonho ou proteger-se da chuva com ele! Mas não é paixão, é tarefa esta de andar por aí com um sonho na mão. O sonho, esse sim, é que pode ser apaixonante e fazer desta tarefa algo único e constante: uma fábrica de sonhos que nunca fecha. Uma fábrica de sonhos que conduz a vida, mesmo daqueles que se recusam a sonhar.


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