Cassandra

«Se alguma maçã cair, saio. Se nenhuma cair, não saio.» Estava decidido. Ia sentar-se debaixo daquela macieira, tal como Newton e ficar ali a pensar... A pensar no quê? Na vida, na morte, na tristeza. Não é nisso que as pessoas normais pensam? 

Cassandra gostava de monólogos. Muitas pessoas passavam pelo seu quintal e viam-na falar sozinha. Ela monologava, num murmúrio, o que gostaria de escrever um dia, mas não tivera ainda a coragem. Gostava de escrever poemas, de reinventar passados longínquos, de recontar presentes, de imaginar futuros. No entanto, de Cassandra não herdara o dom da profecia, apenas o nome. 

«Se alguma maçã cair, saio. Se nenhuma cair, não saio.» Continuou Cassandra, como se despetalasse um malmequer. «Eu sei que, se a maçã cair, tudo ficará igual. Tudo, menos a árvore que terá um fruto a menos e eu um fruto a mais. Se alguma maçã cair, as pessoas continuarão com aquele bicho que as transforma dentro do corpo. É um mundo estranho, de facto. Um mundo de ficção científica, com infinitas barreiras invisíveis que nos separam. Se a maçã cair, talvez a barreira se desfaça; talvez eu tenha uma epifania, uma revelação  tal como o que aconteceu a Newton... Mas alguma vez na vida alguém viu uma maçã cair? Hoje em dia ninguém tem macieiras em casa.» 

Cassandra deitou-se na relva a olhar para cima, para a copa da árvore, desafiando-a a deixar cair na sua testa uma maçã rubra e sumarenta, mas a árvore não percebeu o desafio, ou fez-se despercebida. «Nunca vi uma maçã cair. Talvez faça um poema sobre isso. Será que, neste momento, algum grande escritor ou escritora escreve um grande poema ou romance sobre os dias que vivemos? Será que alguém pinta uma obra digna de museu? Tenho a certeza de que muitos guionistas já se preparam para os filmes mais apocalípticos das suas vidas. Será que há arte a ser feita neste segundo?» 

Esticou o braço e tentou abanar a árvore, abanar a barreira invisível que a afastava da vida lá fora, mas a árvore era imponente e robusta. «Já passaram meses e nenhuma maçã cai. Será que estão verdes demais? Ou talvez estejam tão podres de esperar a liberdade que a gravidade não as afecta 

Cassandra alcançou com um braço o seu caderno de poemas e leu: 

«Hoje escrevi um poema 

Só para ver como me sentia 

Mas fiquei sem saber 

Se sentia tristeza ou alegria.» 

Fez uma pausa e pensou: «Será que estar morto é isto? Não saber o que se sente? Ou é assim que se sente uma pessoa enclausurada? É isto o que as pessoas sentem nos conventos? Não é isto que os velhotes sentem todos os dias? Desde sempre que existe uma barreira invisível que nos separa e só agora damos por ela. Bem, a maçã não cai. Parece que não posso sair.» Cassandra levanta-se, farta de esperar pelo que nunca chega, pelo D. Sebastião dos tempos modernos, pela maçã que só cairá quando lhe apetecer. Continua, então, a leitura do poema: 

«Sempre que escrevo um poema 

Retiro palavras do meu corpo 

Finjo que sei o que faço 

Finjo que o mundo não está torto. 

Talvez amanhã faça outro...» 

Cassandra virou costas à macieira, mas uma voz rugosa, cadavérica e ao mesmo tempo terna, assustou-a quando disse «Então, menina, não lê mais poemas desses?» e fê-la virar-se de repente. A velhota estava apoiada no muro branco e fresco com os cotovelos e observava-a sorrir. Cassandra pensou «Quando eu for velha também quero sorrir assim, sem vergonha dos meus dentes. Será que, quando eu for velha, também vou ser cusca?». A velha disse que ela devia falar mais e pensar menos e que não era telepática para ler os pensamentos de ninguém. A velha provocava-a. Cassandra pensou que deveria responder-lhe à letra, mas não foi capaz. 

«Como sabe tudo isso? Não me conhece.» 

«Sei porque sou cusca. Eu sei que a menina pensa que sou cusca.» 

«Não é isso que eu penso...» 

«Não interessa, eu sou mesmo. Às vezes escondo-me aqui no muro para ouvir a menina. Diz coisas tontas, mas bonitas. Eu dantes também escrevia uns poemas como a menina, mas escrevia-os às escondidas.» 

«Às escondidas?» 

«Sim. Vivia enclausurada, com os olhos pregados no chão e com o medo no coração. Tinha de ser 

«E agora já não escreve?» 

«Upouco, quando a vista deixa.» Disse a velhota, esfregando os olhos e retirando um papel amachucado do bolso. Cassandra pensava «Será isto a solidão? Um monólogo de uma sozinha para outra?» enquanto observava demoradamente a velhota. As suas mãos pareciam folhas secas, frágeis, daquelas que pisamos no chão e estalam muito. Já os olhos, verdes e vivos como os seus, não denunciavam a idade avançada. As mãos de Cassandra eram lisas e rígidas como as folhas dos seus poemas. Cassandra olhava-se ao espelho do futuro. Por fim, disse: 

«Sempre que quiser pode vir ouvir-me, eu não me importo.» e começou a afastar-se da macieira em direcção a casa. A velhota sorriu com um daqueles sorrisos tristes, desbotados e tremidos e, num enorme esforço físico, alcançou uma maçã com o seu braço fininho e trémulo e deu-lhe uma enorme dentada. O líquido da maçã escorreu-lhe pelo pescoço amarelo salpicado de sardas. 

«Não saia de casa, que eu também não!» exclamou a velhota, dando uma pequena gargalhada infantil antes de desaparecer como por magia após ter mastigado o pedaço sumarento da maçã. Cassandra espreitou por cima do muro e viu apenas uma maçã mordida no chão e o papel amachucado com um poema ilegível escrito a lápis. Cassandra pensou «Se alguma maçã cair, saio. Se nenhuma cair, não saio.», olhou uma última vez para a macieira, para as suas mãos rígidas, para o horizonte, para o mundo de ficção científica onde viva, com infinitas barreiras invisíveis que nos separam, e entrou dentro de casa. 




Comentários

Mensagens populares