A Tela em Branco

  Não sei dizer o que aconteceu naquele dia. Talvez fosse do céu cinzento que não me deixava descobrir a luz do sol, ou talvez fosse culpa das cores cromáticas deste universo que não estavam do meu lado nessa manhã em que olhei para a minha tela em branco. Tentei sonhar e imaginar algo que não estava lá, no simples branco que já me confundia o olhar, fazendo-me piscar constantemente os olhos. 
  Pensei nos quadros outrora poéticos que já tinha pintado. Tentei forçar a minha imaginação e forcei também o meu pulso a pegar no pincel já velho e gasto, com as pontas espigadas dignas de um cabelo bastante ressequido pedindo cuidados. Este pincel era o símbolo do trabalho e dos momentos de inspiração que tivera durante meses a fio. Com o deteriorar do pincel, o tempo foi passando, assim como a inspiração que antes era abundante e rica em pensamentos poéticos, doces ou amargos, conforme a minha disposição.
  Tentei entender o porquê do meu pulso se recusar a fazer qualquer gesto. Com o pincel na mão, o meu companheiro fiel recusava-se a tocar nas tintas que me observavam ansiosas por tocar naquela tela virgem de cores, pronta a ser pintada e, mais tarde, colocada numa parede digna de admiração. Mas isso não iria acontecer com esta tela. 
  Perdi-me a olhar o branco pálido daquela tela, como quem olha para o céu nublado à procura de uma estrela. Eu procurava algo no meio daquela fibra alva cheia de sede de tinta. Procurava uma miragem, uma visão, algum sinal do que deveria pintar naquela manhã, como tantas vezes tinha acontecido. Apareciam assim,como se fosse magia, na minha mente. 
  Finalmente molhei o pincel na tinta tão habituada a ser companheira dos pincéis mais variados. Naquele dia, até a tinta me pareceu mais triste, mais incolor e sem o brilho habitual. Concentrei-me então novamente na tela em branco. E se fizesse, pura e simplesmente, alguns rabiscos, riscos, linhas, curvas e contracurvas para expressar esta minha confusão? Tentei imaginar como seria, e não consegui. Pousei o pincel que precisava de reforma no copo com água outrora límpida e sem cor.
  Decidi apenas olhar para a tela em branco como se fosse já um desenho terminado. Podia ver naquela tela o que eu quisesse. Podia ver tudo e todos. Retirei, aos poucos, a pressão que sentia em mim. Deixei a obrigação do meu trabalho voar para longe. Deixei entrar a paixão e com ela voltaram as miragens, os sonhos, as fantasias... Voltou a inspiração. Tinha ideias variadas do que poderia ser pintado naquela tela, mas decidi não pintar. Pendurei-a na minha parede em frente ao sofá. Assim, sempre que sentir um peso dentro do meu coração, ou quando quiser imaginar o mundo à minha maneira e com as cores que mais gosto,  sentar-me-ei neste cantinho e irei imaginar o que poderia lá ter pintado. Vou olhar para a tela em branco com a certeza de que terei mil e uma hipóteses de imaginar o que poderia ter acontecido, e não aconteceu. Vou ter mil e uma hipóteses de sonhar.
  Numa tarde, similar àquela manhã em que a inspiração me fugiu, sentei-me no sofá e olhei para a tela dos sonhos. Imaginei-me então a pintar uma mulher sentada num sofá a olhar uma tela em branco. Fascinava-me o mistério de não saber o que essa mulher estaria a imaginar naquele quadro sem tinta! Pintei e decidi perder-me novamente na tela em branco, para descobrir o que a minha mente me levaria a imaginar naquele dia. De uma coisa tinha a certeza, tinha mil e uma hipóteses de sonhar, e nenhuma delas seria igual.


Comentários

Mensagens populares