Gambiarras

   Começa suave e enche-me o quarto de um som aveludado que ecoa pelas paredes ásperas. A música soa e as notas ficam penduradas pela sala, pelo corredor... As palavras ficam penduradas pelos cortinados e pelo tecto, como se fossem candeeiros ou teias de aranha. O violino dança numa harmonia de sons que passam pelo ar e atravessam os átomos dos meus móveis. O violino acorda-os. Mexe e remexe os objectos que não se movem. Uma única luz que pende do tecto, quase fundida, é agitada pela electricidade da música e pelo ar das palavras que saem de um poema a voar. É uma autêntica festa que espera por ti; numa espera tontamente alegre que, no fundo, é uma ilusão. As minhas veias pendem pelo corpo como a música pende pelas minhas paredes fora. Eu espero que venhas, espero e espero. 
   As minhas veias pendem e secam de esperar. A música vem novamente e toca com uma esperança que não quer ir embora. Eu disse-lhe que a esperança acabou, mas ela teima em vir. Num momento o silêncio invade o ar e os átomos sossegam, como se o tempo parasse, e eu nem pestanejo. Eu pedi que viesses mas a minha alegria era inventada. A minha consolação era a música, que não era invenção nem pedido: está-me no sangue e é uma ordem, uma condição, um conjunto de notas essenciais. As notas soltas pelo quarto faziam lembrar gambiarras coloridas cheias de luz, compridas, que levam luz a sítios escondidos, como a festa no meu coração outrora preparada. E tudo termina como começou, devagarinho, sem querer incomodar, o piano responde ao violino e eu fico sem palavras. Talvez estejam também por aí penduradas, nas minhas veias ou nas gambiarras.



Texto baseado no poema de Valter Hugo Mãe  - Gambiarras

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