Nunca mais

   Quando escrevo rápido a minha letra fica feia, o carvão do lápis fica borrado, e o papel tem vontade de se suicidar perante os meus gatafunhos. Está de noite, mas não durmo, porque tenho livros à minha espera, e um céu cheio de pontinhos para decifrar.

   Ouço, de repente, um barulho insistente, forte, quase rítmico. Talvez seja a vizinha para reclamar dos meus gatafunhos. Coloquei a minha casa à venda e ninguém percebe a minha letra no cartaz que espetei na relva do jardim. No fundo, acho que fiz de propósito, porque não quero desfazer-me das recordações da Luísa. Ainda bem que a minha letra é feia quando escrevo depressa.
   Abri a porta num instante, pronto para lhe explicar que afinal a casa não estava à venda, mas, do outro lado, não estava ninguém: só o céu, a noite escura, pontinhos estrelados e o frio seco de Dezembro.

   Voltei para a sala e tornei a ouvir o tal barulho, que atribuiria ao vento se não visse as árvores do jardim mais estáticas que uma pedra. A Luísa adorava pintar árvores, pois imaginava ter o poder de as conseguir parar no tempo, nem que fosse nas cores de uma tela. Mal ela sabia que, um dia, iria ter o poder de parar o meu coração.

   Desviei as cortinas da janela para ver o que estava por detrás daquele som de quem pede insistentemente para entrar. Lá estava ele, um corvo negro e grande, a bater com o seu bico simpático na minha janela. Já estava habituado às visitas daquele corvo. Não sei qual foi a última vez que sai de casa para respirar ar puro.Quando a Luísa era viva, numa daquelas tardes em que escrevo rápido na minha secretária, o corvo veio ter comigo, e vi que fazia troça da minha letra feia. Foi o início da nossa estranha relação de amizade com o corvo.

"Deixo-te entrar se não gozares com a minha letra. Prometes que não o fazes?" - Perguntei, com uma mão na janela, pronto a abri-la se ele concordasse.

"Nunca mais!" - Respondeu.

   Abri a janela e o corvo foi pousar no meu computador. Conhecia os cantos à casa, e ficou ali parado e imponente. Os seus olhos negros e brilhantes olhavam de um lado para o outro, e interroguei-me se aquele corvo veria o mundo como eu.

"É desta vez que me dizes o teu nome?" - Interroguei-o, sentando-me à secretária. Estavamos frente a frente.

"Nunca mais!"

   A sua voz rouca assustava e fascinava-me. A Luísa adorava ensinar-lhe novas palavras, mas desde que ela partira, o animal dizia apenas duas, "Nunca mais!", à hora habitual, todas as noites.

"A Luísa não vem, corvo. Porque não me dizes outras palavras?"

"Nunca mais!"

   O corvo começou a andar de um lado para o outro, com as suas patinhas quase silenciosas, como se estivesse ansioso por algo. No dia em que a Luísa desapareceu da minha vida, também eu percorri a sala de um lado ao outro, ansioso por notícias, por algo que justificasse o seu atraso. Tive a esperança de que ela entrasse pela casa, alegre como sempre, dizendo que tivera um furo no pneu ou que o trânsito era imenso.
  
"Tens de entender que agora só apenas eu, corvo. A Luísa já não pode brincar mais contigo..." - Expliquei, paciente.

"Nunca mais!" - Exclamou o corvo.

"Exaro, nunca mais..."

   O corvo parou, olhou-me de alto a baixo, e começou a vaguear pela sala, ora pelo chão ora pelo ar, à procura de algo. O seu aspecto era amigável, apesar de ser preto como o carvão. Finalmente encontrou o que desejava: uma bolinha branca das decorações de Natal que rolara para trás do sofá. A Luísa costumava brincar à bola com o corvo, que a perseguia durante horas a fio, sem nunca se cansar. O corvo empurrou-a com o seu bico, e esta veio parar a meus pés.

"Não me vais deixar em paz se não brincar contigo, não é?" - Perguntei, como se não soubesse já a resposta.

"Nunca mais!"

   Toquei na bola com o meu pé, devolvendo-a ao bico do animal, mas esta tocou na sua pata e andou pela sala, batendo nos móveis. O corvo perseguiu o objecto cheio de energia, como um gatinho bebé atrás de um rato. 

   A noite passou e adormeci no sofá. Acordei cheio de frio. Deixei a janela aberta e o meu amigo corvo já não estava lá. Fui fechar a janela e um mar de neve invadia o jardim.

   E lá estava ele, a rebolar-se na neve fria: um corvo negro a brincar na neve branca. Tive inveja daquele corvo, que faz tudo o que quer. Ele é criança para sempre. Saí de casa e fui rebolar-me na neve, imitando-o. Senti-me tão livre e tão criança naquele momento, que desejei ser um corvo. 

   Fiquei encharcado e deitei-me ao comprido na neve. Prometi a mim mesmo que nunca mais iria fechar-me em casa à tua espera Luísa. Nunca mais vou ser infeliz. O meu amigo corvo pousou em cima da minha cabeça, e na sua voz rouca e grave, exclamou:

"Nunca mais!"

Inspirado no poema "O Corvo" de Edgar Allan Poe


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