Emparedados

As paredes são frias e podem ser ásperas ou muito lisas, quase macias. Por vezes são sinónimo de casa e de acolhimento por albergarem no seu recinto famílias numerosas, ou inquilinos solitários. No entanto, para quem vive enclausurado no vão de uma parede, nada disto faz sentido.  Para António não fazia sentido, porque toda a sua vida fora passada ora dentro de uma muralha que o envolvia, ora entre paredes apertadas que o deixavam com espaço suficiente apenas para respirar. Por isso, António é um especialista a descrever paredes, porque sabe ao que cheiram, – a sua parede, pelo menos, cheira a humidade – sabe como e de que materiais são feitas, sabe de cor todas as protuberâncias irregulares que o tacto lhe permite analisar e sabe que sentimentos elas lhe provocam. Só não sabe bem como os explicar em voz alta, mas isso é um efeito secundário de quem vive muito tempo enclausurado. Olha pela janela e não vê uma única luz. Lá fora, o céu estava escuro e sem estrelas e o tempo frio e seco.

António nasceu numa casa que ficava numa aldeia amuralhada, situada num país sem saída. No entanto, os seus pais nem sempre viveram assim, presos num só local. Contavam-lhe histórias de quando eram pequenos e podiam falar e correr à vontade, passear noutras aldeias próximas, colher flores nos campos e confiar nas pessoas. Para António isto era algo impensável, pois no seu mundo era necessário fazer exactamente o oposto. Não havia flores para colher, pois todas elas eram venenosas. Os seus pais explicavam-lhe tudo isto com a maior naturalidade, como se o destino do filho estivesse determinado e nada mais houvesse a fazer. Era para o seu bem e tinha de se comportar como eles queriam. António perguntava sempre quem eram eles, se eram maus e porque os obrigavam a viver dentro daquela muralha tão alta. E o pai respondia sempre muito paciente:

«Eles são quem manda neste país e temos de obedecer. Se não o fizermos temo que coisas más aconteçam. Entendes, filho?» 

Hoje, António entendia, mas na altura não conseguia deixar de ficar revoltado. Na sua inocência infantil, questionava-se se todas as outras crianças que via na rua, sentadas nos muros ou nos bancos de jardim, imóveis e sem rir, sem brincarem entre si, pensavam da mesma forma. No entanto, não se atrevia a falar deles com ninguém a não ser com os pais, pois sabia que não podia confiar noutras pessoas. Desde muito pequeno, António sabia que as palavras eram poderosas e que podiam colocá-lo na cadeia. Também não podia confiar nas palavras. Por isso, fez uma lista. Colocou no papel todas as palavras proibidas. Havia as palavras de morte e as palavras de vida. Umas, eram as palavras feias que não podia dizer; aquelas que pudessem dizer algo menos bom acerca deles. As outras, eram as palavras que ele amava, que descreviam as coisas boas da vida a que estavam privados dentro daquela muralha. Depois da lista feita, deitou-se na cama e rezou para que nenhuma palavra lhe escapasse da boca sem querer, pois não queria nada sentir-se mais preso ainda, dentro de uma cela fria e longe dos pais. Pela claraboia do quarto o dia surgia, quase a medo, e o sol não chegava para lhe aquecer os pés através do vidro. Os pássaros não piaram, mas António não os culpou.

António foi crescendo e chegou à idade dos sonhos e da esperança; aquela idade onde tudo parece possível. Sonhava em ser médico, em viajar pelo mundo... Um dia sonhou que, a caminho da escola, encontrava um local secreto que mais ninguém conhecia, onde era possível passar para o outro lado da muralha através de uma porta que se abria como por magia. António atravessava a porta e para chegar ao outro lado só tinha de subir umas escadas de madeira. No entanto, as escadas eram feitas de uma madeira tão frágil que mais parecia ser feita de palhas e tudo tremia à sua volta. António não conseguiu terminar o seu sonho e descobrir o que havia no final daquelas escadas, mas o sonho deixou-o tão feliz que acordou a sorrir. Para ele, o sonho era a única forma de liberdade que conhecia, algo intransmissível onde ninguém conseguia penetrar e que era impossível destruir. Os sonhos eram, para ele, como uma tarde de primavera, melodiosa e quentinha. Abriu a porta de casa, mas o céu estava escuro e as nuvens anunciavam chuva. Fechou-a rapidamente, com medo que o mau tempo e o vento lhe levassem os sonhos.

Passado pouco tempo depois de ter tido aquele sonho incrível, o seu maior medo tornou-se realidade e foi aí que deixou de imaginar e sonhar. Viu-se sozinho no mundo. Não foi preso numa cela fria como tanto receara em criança, julgando ser essa a pior coisa que lhe poderiam fazer. Depois daquele dia em que chegou a casa e percebeu que nunca mais a sua vida seria igual, desejou ser preso numa cela porque não faria qualquer diferença, pois nunca conheceu a Liberdade. Já estava habituado a viver preso e seria melhor do que estar sozinho. Para António, estar sozinho significava estar sem os pais, que desapareceram naquele dia sem deixar rasto e dos quais só sobrou um bilhete escondido entre os tijolos da parede. Quando tinha de sair à rua, os locais eram apenas sítios cheios de gente de costas, gente que António não podia alcançar. Para ele, essas pessoas tinham perfis ardentes e todas elas pareciam queimar ao toque, olhando-o de forma desconfiada e furtiva, como se ele fosse um animal selvagem.
  
A partir desse dia, António refugiou-se para sempre entre aquela parede feita de tijolos à mostra, sem cimento, e a parede da frente, muito próxima, cimentada e rugosa. Aquele espaço servira outrora de pequena dispensa e agora servia de quarto, de confessionário e de prisão. Por vezes, imaginava que o seu corpo se fundia com as paredes, ficando no meio das duas, metade homem, metade cimento. Colocava-se em pé, tocando as duas paredes, sofrendo uma lenta metamorfose; era a última fase para ser realmente um emparedado. Ele sabia que isso era possível por causa das histórias que a mãe lhe contava sobre homens ou deuses de um país longínquo – talvez fosse a Grécia, não se lembrava bem – que se transformavam em serpentes.
  
A única coisa que conseguia observar daquele refúgio tão impróprio, era o relógio da sala. No entanto, perdeu a noção do tempo e para ele os ponteiros significavam apenas a sua imensa solidão. O relógio acabou por parar, vítima do cansaço. António não queria sair dali, pois desconhecia se o tempo lá fora continuava a passar e não queria sair à rua e ver que tudo continuava igual, amuralhado e estático, como uma fotografia a preto e branco, nostálgica e lúgubre. Mas ele sabia que era impossível algo permanecer imutável, porque o tempo faz tudo fluir e tudo transforma, até as paredes que envelhecem e se degradam sofrem com o poder do tempo. Até as palavras sofrem mudanças, de geração em geração, e os seus significados mudam, como as águas de um rio que nunca são as mesmas. Quando pensava nas palavras – coisas frágeis e imensas – a vontade de voltar a ler aquele bilhete inundava-lhe o peito. Vinha-lhe a esperança de sair daquelas paredes, daquela muralha e daquele país e correr pelo mundo fora, dizendo tudo o que queria. Mas António não sabia se conseguiria alguma vez enfrentar um mundo livre onde pudesse usar palavras que para ele era coisas ilegíveis, nocturnas e que deviam ser proferidas apenas em gemido, fracamente, sem deixar rasto. Afinal de contas, as palavras eram as filhas preferidas da Liberdade. Quando se sentia assim, abria o bilhete pela enésima vez e lia.
  
Por vezes, cantava as músicas que a mãe lhe ensinara, muito baixinho para ninguém ouvir. Foi isso que fez naquele dia. A voz, rouca do pouco uso que António lhe dava, fraquejou de início, mas depois tornou-se tão límpida que até o sol brilhou mais através da janela da sala. Era proibido cantar livremente, por isso cantou baixinho uma música que a mãe inventara só para ele. Era triste e bonita... falava de palavras e da vida, “só sombra só soluço só espasmos só amor só solidão desfeita”. Porém, nesse dia, António decidiu pegar na viola e dedilhar umas quantas notas enquanto cantarolava. Quando parou, ouviu um leve bater no vidro embaciado da janela. Fazia frio lá fora e o tempo estava húmido, mas solarengo. Guardou rapidamente a viola no seu esconderijo, limpou a janela com a 
manga do casaco e viu um rapazinho com cerca de dez anos a sorrir-lhe do outro lado. Abriu a janela, desconfiado.

«Cantas tão bem!» – exclamou o rapazinho.

António, em pânico, ia fechar a janela e fugir dali o mais depressa possível, quando o rapaz lhe implorou que não o fizesse.

«Por favor, eu vim para te ajudar. Ouvi o teu canto.» – explicou o rapazinho – «Queres sair daqui? Há uma forma de o fazer, só tens de ir buscar uma coisa a um sítio e todos os problemas se irão resolver.»

António não acreditava que um simples rapazinho o pudesse ajudar, mas a curiosidade impeliu-o a perguntar que coisa era essa e onde ficava esse sítio milagroso.

«Traz a tua viola e segue-me. Confia em mim.»

Com a viola às costas, saiu de casa e o pequeno estendeu o braço, oferecendo-lhe a nívea mão. António agarrou-a gentilmente e começaram a caminhar em direcção à floresta. Cruzaram-se com dezenas de pessoas que pareciam não notar a sua presença – era como se fossem invisíveis! O menino dizia constantemente:
  
«Não me largues a mão, se não toda a gente nos vai ver!».
  
Percebi que aquele rapaz tinha algo de invulgar ou até de sobrenatural. Obedeci-lhe, pois não tinha nada a perder. Quando chegámos mais ou menos ao meio da floresta, o rapaz pediu-me que cantasse e tocasse novamente aquela melodia.

«Viemos até tão longe para isso? Só querias ouvir a minha canção?» – perguntei, chateado.

«Toca, por favor.» – disse secamente. Fiquei impressionado com a sua voz tão séria e com as suas feições tão serenas. Aquele rapazinho não era uma criança, pois tudo nele indicava maturidade, como se habitasse este mundo desde sempre.

Portanto, decidi cantar o poema da minha mãe.

“Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição”

 A minha voz ecoou pela floresta como se fosse amplificada pela natureza. As árvores começaram a dançar e centenas de aves vieram de todos os lados. Umas pousaram na erva e outras voaram em meu redor sem parar. Escondidos entre a folhagem vi veados tímidos e javalis. Um forte vento começou a sentir-se e as folhas voavam juntamente com as aves. Ouvi um estalido e de repente não estava na floresta e sim num lugar escuro e avermelhado.

«Chegaste ao submundo.» – explicou o rapaz.

«É este o tal sítio? E agora?»

«Agora pede aquilo que mais desejas» – dito isto, o rapaz desapareceu e António ficou sozinho. 

Fez um desejo, sem dizer palavra alguma, pois sabia que os desejos ditos em voz alta nunca se concretizavam. De seguida, ouviu uma voz grossa e medonha, que ecoou por todo o lado, dizendo:

«Aí está o que desejas, podes olhá-la uma única vez e ela seguir-te-á. No entanto, se olhares para trás, perderás a vida.»

António virou-se e viu-a. Era linda, trazia um vestido de linho branco comprido que esvoaçava livremente. Tinha as faces rosadas e um sorriso no rosto emoldurado de caracóis dourados. Estendeu-me o braço, tal como o rapazinho, e deu-me a sua mão. Toda ela cheirava a Liberdade e era tão bom olhar para ela que não conseguia desviar o olhar. Só de imaginar tê-la ao pé de si todos os restantes dias da sua vida, o coração e a esperança de António cresciam exponencialmente. Começaram a caminhar de mãos dadas. Ela ia um pouco mais atrás, porque se movia lentamente. No entanto, António queria trazê-la para a sua casa bem depressa e não entendia a demora. Começou a andar muito depressa, pensando que isso a faria acelerar o passo, mas nada feito! Começou a correr, mas à medida que acelerava, ela andava cada vez mais devagar, puxando-o para trás. Sabia que não podia olhá-la, mas tinha de saber o que causava tanta lentidão. Não ansiava ela ir com ele? Não ansiava ela trazer ao mundo a alegria de outrora?
  
Começou a correr velozmente e ela parou, largando a sua mão de repente e para sempre. António sentiu os dedos dela, tão mornos e macios, escorregarem-lhe pela mão. Sentiu-se vazio. Tinha de a levar e o mundo dependia disso. António não queria viver o resto dos seus dias emparedado e não era o único! Parou de correr e esperou uns segundos, mas ela não avançou para lhe dar a mão novamente, por isso decidiu olhar e ir buscá-la. Voltou a cara e viu-a, de braços estendidos para si. A sua face estava pálida, com uma expressão de profundo desapontamento e os olhos tão tristes! Só teve tempo de lamentar:

«Oh, António! O que foste fazer?»

E assim, do nada, desapareceu, como se fosse uma nuvem que se dissipa aos poucos no céu. António correu e tentou agarrá-la, mas nos seus dedos só sentia ar! Foi assim que António perdeu a vida. Andou na escuridão durante longos minutos sem encontrar uma saída ou alguém que o ajudasse. Sabia que não havia como voltar, por isso deitou-se no chão, à espera da morte, impotente. Decidiu cantar pela última vez, sem saber que o seu sacrifício iria mudar a vida no seu mundo e que o seu canto, ouvido pela cidade inteira, impelira a revolta no coração de todos os que sofriam. Antes de proferir a última estrofe daquele poema cantado, abriu o bilhete dos seus pais, que guardara no bolso das calças.

Com as suas últimas forças, cantou a música escrita no bilhete. O esforço foi tanto, que as suas palavras ultrapassaram o submundo e chegaram não só ao interior das muralhas da sua aldeia, mas a todo o país. António usou o seu último suspiro para cantar aquela melodia e, com ela, viajou a Liberdade, que deixara escapar ainda há pouco. A força e beleza do seu canto foi tal, que ela foi instantaneamente atraída por ele e levou a esperança e as palavras a toda a população.  Por todo o lado, o seu canto foi ouvido e por todos os seus últimos versos repetidos, de geração em geração, para que a Liberdade não voltasse nunca para o submundo.

“Entre nós e as palavras, os emparedados 
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar”

"The path of Orpheus" by Simon Kenny



Inspirado no poema de Mário Cesariny "You are welcome to Elsinore" e no mito de Orfeu e Eurídice

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