Até ao Limite do Universo

  Os prédios erguiam-se no fundo daquela visão outrora real. Agora não passava de uma memória varrida para debaixo do tapete das recordações. Erguiam-se os prédios cheios de luz a trespassar pelas janelas, que cintilavam na noite, ajudando a Lua e as Estrelas a iluminá-la. O pequeno lago jazia no solo imóvel, sem um único mover de águas. As luzes da noite incidiam nele, tornando-o uma palete de cores brilhantes. Neste panorama a preto e branco, nós sentámo-nos na areia em frente ao tal lago e aos tais prédios luminosos. Ficámos lá tanto tempo que conseguimos observar as luzes dos prédios a desaparecer, sem restar uma única que nos acompanhasse.
  O lago ficou então mais escuro com a formosa lua reflectida. A areia dura e cheia de pedras incomodava os nossos corpos cansados. Eu, deitada ao pé de ti, sentia-me finalmente em paz, depois de toda a cidade estar finalmente a dormir. Tu, deitado ao pé de mim, sentiste-te momentaneamente em paz com todo aquele silêncio sobrenatural da noite. Os nossos pés ainda molhados tocavam-se, procurando o calor. A roupa não conseguia proteger o nosso corpo das pedras duras, mas mesmo assim, não nos movíamos daquele sítio sereno que nos prendia de corpo e alma. 
  Tu sentaste-te e acendes-te um cigarro para colocar um fim ao silêncio da noite que acabava sempre por te incomodar, ou amedrontar. O clic do isqueiro fez um pequeno eco e não se encaixava neste silêncio natural da noite. Acendes-te o cigarro e iluminaste um pouco a nossa vista. O teu olhar perdeu-se pela cidade em redor, no fundo deste panorama, e eu adivinhava os teus pensamentos. 
  Lá ao fundo, a ponte permanecia imóvel e os carros davam-lhe, por fim,o merecido descanso. Já não se ouviam pneus nem motores. Apenas os grilos da noite insistiam em ficar acordados para nos acompanhar neste momento de paz.
  O fumo saía da tua boca lembrando-te de que és um poluidor desta natureza inofensiva e, no fundo, sentias-te um pouco culpado por prejudicar algo que tanta paz te traz. Mas continuavas a fumar, porque o vicio é bem maior que o remorso de poluir. 
  Olhei para o céu estrelado e sentei-me ao pé de ti, encostada no teu ombro esquerdo cheia de sono e tranquila. Os nossos pés já estavam secos da caminhada junto ao lago. Foram ambos abençoados pela água cristalina. Bem, talvez não seja assim tão cristalina. Talvez esteja um pouco poluída. Mas, mesmo com toda a poluição, nós tentávamos desfrutar da natureza nocturna, sem qualquer ruído humano.
  Nestes momentos os nossos pensamentos uniam-se. A minha cabeça contra a tua, o meu cabelo a esvoaçar e a tua mão a remexer na areia eram os movimentos daquela aguarela a preto e branco, naquele lago que parecia morto, ao pé de uma cidade morta-viva que só nos deixava desfrutar do mundo quando adormecia.
  Apagaste o cigarro e deitámo-nos de novo, questionando-nos acerca do Universo. Ambos pensámos, nesse instante, que um dia ele se iria vingar de nós por tanta maldade. Ambos pensámos que iríamos morrer, num futuro distante ou num futuro próximo. Tudo estaria acabado. Do que valeria então pensarmos acerca disto, ao pé de um lago, longe da cidade cruel? Do que valeria procurarmos a paz num mundo virado do avesso?
  Olhámo-nos, adivinhando tanta dúvida, e eu sorri-lhe. Então, ambos pensámos que não queríamos morrer. Depois, pensei que nunca queria perder estes momentos junto ao lago na sua companhia. Pensei que um dia iria morrer primeiro do que ele. Pensei que o deixaria sozinho neste mundo e pensei que seria horrível morrer e, no final de contas, não existir mais nada: apenas escuro. Por fim, pensei em pedir-lhe desculpas pelo meu futuro falecimento e ausência.

-Não faz mal. -Disse ele, limpando a lágrima que escorria pela minha cara jovem que sorria, com ânsia de viver até ao limite do Universo.


Comentários

Mensagens populares