As Memórias são como Folhas de Outono

  Olhei para aquela sala à procura de algo. Os livros estavam ordenados nos móveis aborrecidos pelo tempo e os cd's arrumados e cheios de pó. Meticulosamente ordenados nas prateleiras, lembravam-me que a vida dentro daquela sala era muito mais organizada do que a vida para lá dela.

  Nunca vi ninguém com os sentimentos bem organizados em móveis aborrecidos pelo tempo, nem vi os problemas de alguém arrumados e cheios de pó.
  
  As paredes nuas, lisas e sem qualquer graça, lembravam-me que a rua merecia ser olhada. Pela estrada repleta de folhas de outono, os meus passos nem se ouviam, abafados pelos meus pensamentos ruidosos.

  Sentei-me num banco com a intenção de parar de pensar. Com a intenção de prender os pensamentos que tanto barulho faziam. E foi aí que a vi; uma velhota, do outro lado da rua, sentada num banco idêntico ao meu, dizendo palavras sem sentido, repetidas, quase sem se ouvirem. Palavras de que ainda se lembrava. Os seus olhos vagueavam pela paisagem, como se fosse vazia, como se não estivesse presente naquela rua, e sim num pensamento qualquer, tão bem guardado e com receio de fugir e de fazer barulho.
  
  Tive vontade de lhe fazer uma festa na face.

  Os olhos azuis daquela velhota pareciam não sossegar. Tão vazios mas tão inquietos, olhavam para todos os cantos daquela rua sem verem verdadeiramente o que desejavam de ver. Talvez não se lembrasse do que queria ver. Aqueles olhos da cor do céu não reconheciam nada do que viam, ou faziam um esforço para tentar reconhecer.

  A sua boca abria e fechava repetidamente, como se fosse um gesto necessário à sua sobrevivência.

  Impulsivamente, levantei-me e atravessei a rua. Comecei a pensar se as nossas memórias ficariam, de facto, guardadas nalguma estante, tal como ficavam os livros, à espera de serem usadas. Talvez sim. Aproximei-me da velhota e só aí reparei num senhor a seu lado.

-De que sofre a senhora? - Perguntei sentando-me entre eles.
-De memórias perdidas... - Respondeu o senhor nostalgicamente.

  Sim. As nossas memórias ficam guardadas, algures numa estante empoeirada e aborrecida. Agora sei que por vezes essas memórias se perdem de nós ou são roubadas pela desorganização da vida.

  Tive vontade de lhe fazer uma festa na face.

  Os seus olhos inquietos encontraram os meus e sossegaram, talvez recordando a juventude que outrora também lhes pertencera.

-Minha querida, minha querida... - Eram as palavras que a velhota sussurrava quase sem se ouvirem.

  Acariciei-lhe a face e prendi esta minha memória dentro de mim para sempre. Pode ser que eu não a perca. Olhei então para aquela rua ao lado da velhota e do senhor nostálgico. Tal como a velhota, decidi olhar para tudo e tentar não esquecer nada. Dei-lhe a mão e comecei a organizar a estante dos meus sentimentos, pois esses são como os livros numa estante: se lhes deitar-mos a mão ao acaso, pode calhar-nos qualquer um. Já as memórias, são como as folhas de outono caídas naquela rua. Perdem-se por aí, fogem de nós, e não nos deixam apanhá-las.


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