Se a Morte pedisse a Reforma

   Imaginar um país onde a morte não existe, e em que a fronteira é sinal de descanso eterno pode parecer fácil, e até perfeito: a vida seria eterna, e para isso bastava não colocar os nossos pés do outro lado para que o desejo da eternidade da vida humana, que desde cedo habita na nossa espécie, se concretizasse.

   Mas não seria assim tão simples. Imaginem o surgimento desta "nova espécie de imigrantes forçados", que só esticariam o pernil após uma viagem até ao país vizinho, e nas complicações que surgiriam, no país de origem e nos países vizinhos, forçados a arcar com as mortes no seu território, clandestinamente. Tudo isto por causa das intermitências da morte. Quem permanecesse longe da fronteira, mesmo que estivesse morto, ou melhor, em "morte suspensa", ficaria assim para sempre, nem morto nem vivo - morto-vivo!

   O poder político e religioso entrariam em conflito ao tentar resolver o problema da melhor forma. As funerárias iriam à falência e a missa não faria sentido. A igreja e a religião seriam postas em causa. Se não existe morte, não precisamos de rezar mais para manter o nosso lugar no céu intacto e guardado; ou então, talvez ele continue lá, à nossa espera, eternamente, com uma placa que diga "reservado" como nos restaurantes, só para o caso da morte voltar das férias. Nunca se sabe, é melhor continuar a rezar e jogar pelo seguro.

   Imaginem um país onde famílias correm às fronteiras com os seus mortos-vivos, fartos de carregar o peso que a morte agora se recusa a aliviar, - aquela morte em pena suspensa - para lhes darem o descanso eterno desejado. Imaginem a inversão de valores da sociedade em questão. Aqueles contra o suicídio dos mortos-vivos, vendo com vergonha a atitude das famílias, pouco cristã, ao despojar os seus fardos para lá da fronteira; e depois, aqueles que defendem que a morte deveria voltar, e que o melhor destino possível é atravessar a fronteira, mesmo com todos os vizinhos maldizentes que perguntam onde está o velhote em morte suspensa que já não se encontra com a família, também já atravessou a fronteira da vergonha?

   Imaginem um país onde as agências funerárias deixam de lucrar, e se aliam à "máphia" neste negócio das fronteiras, onde quem deseja a simples morte passa a ser registado como suicida na certidão de óbito. 

   Imaginem a desordem que vai na cabeça destas pessoas, desde o primeiro-ministro desorientado, ao padre que não sabe como há-de começar a missa de domingo; dos velhotes que nunca mais vêm chegar a hora de partir, às crianças inocentes de tenra idade, que deveriam ter partido tão cedo e continuam por cá, numa eterna pausa da morte. Será que não andamos todos mortos-vivos?

   Esperemos que a morte não se reforme, dizem vocês agora. "No dia seguinte ninguém morreu" e todos se questionaram acerca da sua existência e divagaram sobre o sentido da vida, ou a falta dele.

Texto inspirado no livro As Intermitências da Morte de José Saramago. Ainda não o terminei, mas deixou-me uma enorme vontade de escrever sobre aquilo que já li.

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